7 de junho de 2009

Carta Pra Val

Valzinha,
A minha memória mais antiga, (ou seria a primeira?), é a do som do motor de um carro juntando-se à de um cheiro amargo mas sutilmente acolhedor. O carro era um fusca, e o cheiro era do combustível queimado saindo pelo exaustor. Eu estava parado, na calçada, enquanto o fusca subia a rua com esse barulho típico dos anos 60 que era o rugido dos motores Volkswagon. Do outro lado da rua vi um homem saindo violentamente pela porta laranjada de uma casa bege. Atrás dele, saíram dois braços que o seguraram com força e o puxaram para dentro da casa de novo. Um encontro, que para mim, durou uma eternidade, e uma lembrança que me seguiu a vida toda. Esses braços que suplicavam, "Fique. Fique!". Fiquei hipnotizado pelo embate entre o homem querendo se desnudar desse controle e os braços que sofriam para exercer algum domínio sobre seu corpo. Senti então um aperto no meu ombro e ouvi uma voz me dizendo, "Vamos. Vamos, Rafinha!". Anos depois divulguei esta memória à minha mãe. "Meu Deus, você tinha acabado de fazer um ano de idade!”, ela disse, e prosseguiu com a sua explicação do acontecido. “Tua avó te levava à escola todos os dias, o aperto no ombro que você sentiu deve ter sido a mão dela te puxando para continuarem ruma à escola. O homem era o tio Dorival, nosso vizinho de rua. Deve ter sido o dia em que ele largou a sua mulher, a Leila. No dia seguinte ela foi encontrada morta." A minha vida toda foi marcada por essa mão me amparando, empurrando ou segurando. Seja a da minha avó, minha mãe, amigos, irmãos...a tua. Talvez sempre precisasse desse ponto de referência? Ou simplesmente faço parte do clichê do medo de ficar sozinho. Agora estou velho. Não tenho mais a sapiência e equilíbrio de uma criança, mas tenho você, e sei que, mesmo estando deitado nesta cama frigida de hospital, não posso mover meus passos por este atroz labirinto que é a minha vida, sem você. Sua mão e seu coração me seguram com vigor inconfundível e mi dizem, "Vamos , vamos, Rafael!" Mas, agora, está na hora de você deixar que eu vá. Não pode haver embate, braços suplicando, nem choro desperdiçado, pois eu não sou o Dorival e nem você é a Leila. A nossa vida foi um sonho. Está na hora de separar a vida do sonho - de deixar que a minha vida acabe e o teu sonho continue. Os médicos sabem o que fazer. Já ficou combinado. Não se preocupe com nada. Por favor, saiba que nunca escondi nada de você, e que tomar esta decisão sem te consultar, dói mais do que eu poderia imaginar. Esta será a minha última carta, pois tanto eu quanto a nova enfermeira que transcreve os meus rabiscos, estamos exaustos. (Lucinha ainda está de férias. O método que ela criou para entender os meus rabiscos tem que ser divulgado! Talvez, juntas, vocês possam fazer algo à respeito. Agradeça a ela por mim, tá?) A boa notícia, é que o livro está terminado! Gostaria de saber o que acha, mas desta vez não terei a sabedoria de suas críticas me amparando. Até sempre. Te amo e sempre te amei. Rafael.