28 de maio de 2008

A Casa

Poderia viver aqui, pensou. Era uma casa quase perfeita. Quase, porque não conseguia parar de pensar nos habitantes anteriores. Nos donos de sua historia. Mas o quase fazia parte de sua vida, assim como a historia dos outros também. Desde que decidiu que a sua vida não valia mais tudo aquilo que tinham lhe dito que valeria. Desde aquela época no quartel, quando soube que podia fazer muito mais do que lhe era exigido, onde aprendeu a chorar, quando aprendeu a se defender contra aqueles que desejaram seu corpo, e quase arrebentaram os frágeis fios de alma que ainda lhe restavam. Foi quando aprendeu a mentir, de verdade, e a criar um desgosto azul por batatas. Qualquer batata. Gostava de ir a casas alheias, fingir que teria condições para obtê-las, habitar nelas durante alguns minutos, convencer o agente imobiliário que ele compraria o imóvel, sem dúvida. Como seria o pagamento? A vista ou parcelado? A vista. Estou esperando uma herança. Graças a Deus meu avô finalmente morreu. E aguardava a reação. Sempre foi um peso na minha vida. Não acha que avós, em geral, são um peso? É claro. O agente concordaria. E então. O velho já tava nas últimas, coitado. Pensei até em adiantar um pouco o processo de sua retirada, mas ele teve um derrame semana passada. Menos trabalho. Reação.
Você tem família? Sim. Netos? (O agente desta vez era mais velho que os de costume). Sim. Enquanto suava. Não, o dia nem ameaçava chegar a estar morno. PVC? Cobre? PVC. Ótimo. PTU? Impostos? Papelada em ordem? Sim. Nada em inventario? Não, na verdade um casal se separando, nenhuma morte. Ah, sim. Agora fazia sentido. Por isso sentia-se tão em casa. Seus pais tinham se divorciado quando criança. Não sabia na verdade o que era ter um pai, nem o conhecia direito, e mesmo assim o odiava. Odiou. Durante muito tempo. Agora não. Agora era apenas um fato. Um dado dentro de sua vida, que se confundia com a estatística das mentiras que aprendera a contar desde os tempos do exército. Se o senhor quiser (senhor?) se o senhor quiser podemos agendar uma hora para revisar os documentos da casa. Você acha que seus netos um dia desejarão a sua morte? Como? Seus netos...você acha. O senhor (senhor de novo?) vai querer ver mais da casa? Mais o que...tem mais? Não. Então, a resposta deve ser não. Como? Se seus netos já desejaram a sua morte, a resposta deve ser não.
Sentia que estava chegando àquele ponto...àquele momento em que toda civilidade é abandonada. Sentia que o agente poderia dar-lhe um golpe a qualquer momento. Agora sim, agora poderia tentar ser seu amigo, antes disso não. Ou será que. O senhor, agora o senhor era o agente, claro, o senhor tem moradia própria? Perguntou-lhe. O agente suava aquela camisa fina, talvez passada pela sua esposa, num apartamento de subúrbio. É claro que não tinha casa, apartamento, porra nenhuma própria. Nem a sua vida era sua, e ele sabia muito bem disso. `Quando será que deixou de viver, para viver pros outros?` perguntou-se. O velho deixou as chaves cair no chão antes de abrir a porta de saída, ou de entrada, e perguntou mais uma vez, o senhor (ainda o senhor?) vai querer agendar outra visita, ou conferir os papeis da casa? Não havia ódio dentro de seu olhar. Um olho sofria de glaucoma, o bigode precariamente aparado, os óculos tortos, a bainha esquerda da calça desbotando. A calça de um terno que deve ter sido marrom. Marrom! Não, ele não tinha mulher em casa, com certeza falecera há poucos meses. Então...a sua esposa cozinha o seu almoço? Ou o senhor compra na rua? Riu, inocentemente. (Golpe de misericórdia). Os olhos cinza escureceram, as veias no pescoço dobraram de tamanho, e palpitavam num compasso que dirigiria o momento do soco que lançaria em direção ao seu cliente...mas nada. Apenas um olhar que transpareceu uma definição que todos procuram. A foto da saudade estampada em seu rosto. Foi mais que o rapaz pretendia receber em troca.
`Puta que o pariu! A casa era do velho!´ percebeu.
É uma casa muito bonita, lhe disse.
Sim.
Mas acho que não serve para mim.
Não. Com certeza não, o velho respondeu, e andaram um pra cada lado. Ele escolheu a calçada, e o velho o asfalto.
Como pôde se enganar assim? Como pôde sentir que a vida seria aturavelmente boa dentro daquela casa? Foi direto para um orelhão. Discou. Qualquer número. Desejou que uma voz masculina atendesse. E foi assim.
Pai?
Não.
Qual o seu nome?
Carlos.
Você poderia ser?
Desligaram. E ele chorou. Imóvel. Sentado na quina da calçada por onde, duas horas depois, passaria a água de um esgoto entupido.


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