Uma madrugada levaram 16 de nós para um prédio, daqueles construídos antes da Segunda Guerra, num ônibus todo preto. As janelas também estavam pintadas de preto. Estacionamos no meio de um pátio. Cheiro a gasolina, a morte. Os sons lembravam a abandono. Vendaram nossos olhos e nos conduziram até um salão e lá ficamos esperando sem saber por quê.
Depois de um tempo começaram a nos chamar, um por um. Eu fui o quarto, e me levaram para uma outra sala menor. Removeram a minha venda e então, vi que dentro da sala havia um tenente, um sargento, uma mesa e uma terceira pessoa sentada e amarrada a uma cadeira. Vestia um capuz e luvas de couro. O sargento segurava uma marreta na mão direita. Ele olhou para mim, não, plantou seu olhar em mim, botou o polegar do sujeito encapuzado na quina da mesa e bateu com força. Eu fiquei olhando, não disse nada, não soube o que dizer. O encapuzado foi instruída a não fazer nenhum barulho, mas a dor o levou a um lugar além do silêncio, e ouviu-se um grito contido, que confesso, me cativou. Ninguém disse uma palavra. Na mesma noite entrei em mais duas salas. Procedimentos similares.
Voltei mais uma, duas, três, seis noites seguidas. Procedimentos similares. Mas na sétima, ao entrar na sala, notei que não havia sargento. O mesmo tenente de sempre, olhou-me e entregou-me a marreta. Sabia o que tinha que ser feito. Procedimentos similares. Comecei com o polegar.
Depois daquela noite não me chamaram mais e achei que tivesse me equivocado de alguma maneira. Mas o meu receio esvaeceu semanas depois, com a chegada de um cheque na minha caixa postal. Foi o dia mais feliz da minha vida! Meu, dos meus dois filhos porque eles ganharam uns soldadinhos de chumbo que sempre quiseram e de minha mulher porque pude comprar a geladeira e a batedeira que ela sempre quis. E foi que tudo começou. Cada semana, cada cheque era um motivo de alegria. E o tempo foi passando. Reformamos a casa, os meninos puderam entrar nas aulas de inglês e na escolinha de futebol.
Na verdade, eu sempre quis ser pintor. Sempre admirei como o balé de cores estáticas numa tela, podia mexer tanto comigo. O meu trabalho na delegacia tinha se tornado rotineiro, sem nenhum sentido. Eu me sentia um empregado público qualquer, um continuo.
Então decidi abrir meu leque para novas formas de expressão e comecei a utilizar outros instrumentos de trabalho. Foi quando surgiram as minhas primeiras pinturas.
É impressionante como o som emitido pela dor consciente é completamente diferente àquele emitido pela dor inconsciente, e foi a eletricidade que me ajudou a brincar com esta descoberta. O eletro-choque atinge o ponto mais profundo da alma de uma pessoa, de maneira direta, além do racional. Tornou-se fruto do meu fascínio. Desde o girar da manivela até o final do ultimo uivado dessa pessoa que perde completamente a percepção de qualquer coisa tangível. Até colocar os fios de cobre no lugar certo tornou-se um trabalho minucioso, de requinte. Geralmente se começa pelo braço direito para poupar o coração. O teor do sofrimento da pessoa não me interessava. Não sou sádico. O que me interessava era a qualidade cromática do som emitido na hora da aplicação.
Por exemplo, um choque nas têmporas gera um celeste, mas se eu quiser um azul turquesa eu vou direto pra sola do pé. Azul cobalto, no pênis. É claro, conseguir esse tom de azul numa mulher é complicado. Um choque na vagina geralmente retorna um vermelho laca orquídea, ou um vermelho Veneza se ela estiver grávida. Outros vermelhos se encontram na boca. Vermelho rubi, por exemplo, é na gengiva. Mas a gengiva é um lugar problemático porque o fio de cobre geralmente se cola na mucosa. Vermelho francês, carie, Da China, dente quebrado vermelho - a não ser que o nervo esteja exposto. Aí você passa para um marrom terra. Engraçado, a vagina e a boca geram muitos vermelhos. Talvez porque as duas sejam buracos. Os verdes: Verde musgo parte inferior da língua, verde esmeralda : pálpebras, mas se você queima a córnea, você perde o seu verde.. Fundo dos ouvidos, branco titânio. Violeta é nos testículos. Alguns tons de lilás se conseguem nas partes superficiais do corpo, mamilos, ponta dos dedos, unhas, em fim. Aliás a minha mulher me disse que o violeta está na moda. E o preto? O preto é anus. Anus sempre preto.
É claro, cada pessoa tem as suas particularidades. Somos todos indivíduos únicos, mas eu aperfeiçoei a minha técnica de tal maneira que posso pintar o quadro que eu quiser com o som que eu quiser. Minhas próprias obras de arte. A fidelidade! Fundamental pro sucesso do artista – a fidelidade ao seu oficio – e eu posso dizer que sou um artista de sucesso. Pus comida na mesa, construí uma casa nova, botei meus filhos na melhor escola, e fui fiel a todos os caprichos de minha esposa. Afinal, qual artista, hoje em dia, pode dizer que sobrevive de sua arte? Eu sobrevivo. Eu sobrevivo.
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(Texto que fez parte da peça "Catástrofe da Borboleta”. Tortura nunca mais! As ditaduras têm uma maneira de nos fazer sentir que é exatamente isso que precisamos. Não é verdade)
24 de maio de 2008
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